quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Giz

A menina desenha uma reta no chão com um toco de giz. Dá três passos para trás, olha, pensa. Lembra das aulas de matemática e coloca uma seta em cada extremidade da linha. Sem isso, ela teria apenas uma semi-reta e era uma reta que ela queria, com os dois lados indicando o infinito.
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E afinal, que tipo de coisa precisa se mostrar infinita desta forma? "Ora, o tempo", diz a menina.
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A menina caminha metade da reta como quem se equilibra no meio fio, para e se senta ali mesmo. Ali, naquele ponto exato, um ponto em meio ao infinito de pontos que compõem uma reta a menina esmaga o giz, com certa fúria. Ali estava o seu presente. Só ali.
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Nada mais inquietante que poder olhar para um passado que se estima e para um futuro que se sonha, sem poder estar em nenhum outro lugar que não o presente. E sendo assim, a menina não pode ver o tempo isenta de preocupações.
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Perdida em questionamentos, a menina suspira bem alto. Fecha os olhos e se permite sentir a brisa. Levada pelo suave toque do tempo ela deita, as pernas soltas, semi-abertas. Com os dedos ainda sujos de giz, ela contorna os próprios lábios, tingindo-os de branco. E assim a menina espera. Espera que o vento lhe faça mulher e a leve para longe, muito longe dali.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Texto sem inspiração numa noite inspirada (ou não)


Sabe... Eu vou contar uma coisa só pra você...
Eu tenho um vício.
Um vício antigo, desses difíceis de largar.
Nada assim muito pesado...
Não vou morrer de câncer ou de overdose por causa dele.
Mas tem lá o seu teor corrosivo.
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Sou muito apegada ao passado.
Todo o tipo de passado.
Mesmo o meu...
Principalmente o meu.
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Eu tenho até uma mania.
Mania de cutucar feridas.
Nem sempre dói.
Dessa vez nem doeu, juro.
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Quando criança,
eu lembro que costumava raspar a palma da mão com um estilete.
Até sangrar.
Fazia meus desenhos.
Esculpia minhas iniciais.
Certa vez... eu inventei de tentar fazer uma tatuagem.
Cutuquei até ver o sangue e tratei logo de pingar tinta de caneta rosa lá dentro.
Quando a pele fechou, ficou lá o sinal.
Depois desapareceu.
Não deu certo.
Desisti.
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Modifiquei a mania.
Parei de me cortar.
Só me torturo com a memória de vez em quando.
E não há tristeza nisso.
A tristeza não é triste quando a temos sob controle.
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Uma hora ou outra, todos vamos sangrar.
Então, fazer-se sangrar pode ser só uma medida preventiva.
Uma vacina.
E das boas.
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Sinto-me mais forte depois daquela cutucada com o estilete.
Até soube que tem uma doença assim.
Um disturbio psicológico.
Ah... Como eu odeio jalecos brancos e luvas de látex!
Fábricas de patologias!
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Bem, então..
Você já sabe.
Se necessário, eu sei me ferir sozinha.
Eu só preciso de alguém pra me ajudar a respirar.
Seja meu ar...

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

sem título


Tudo sufoca.
Tudo, tudo, tudo.
E no fim, só o que realmente permanece é o olhar triste, desolcado no tempo.
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"Existe apenas uma solidão, e ela é grande, nada fácil de suportar. Acabam chegando as horas em que quase todos gostariam de trocá-la por uma união qualquer, por mais banal e sem valor que seja, trocá-la pela aparência de uma mínima concordância com o próximo, mesmo que com a pessoa mais insignificante... No entanto, talvez sejam justamete essas as horas em que a solidão cresce, pois o seu crescimento é doloroso como o crescimento de um menino e triste como o início da primavera. Mas isso não deve confundi-lo. O que é necessário é apenas o seguinte: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo e não encontrar ninguém durante horas, é preciso conseguir isso. Ser solitário como se era quando criança, quando os adultos passavam de lá para cá, envolvidos com coisas que pareciam importantes e grandiosas, porque esses adultos davam a impressão de estarem tão ocupados e porque a criança não entendia nada de seus afazeres."
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(RILKE, Cartas a um jovem poeta)

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

O amor que nunca se declara

A menina ama, ama mais do que as palavras.
Ama o amor profundo e puro.
Ama tanto que dorme e acorda com um só pensamento.
Ama e olha para o teto, e suspira.
Ama e olha para os papéis coloridos,
.......................para as caixas de sapatos,
.......................para o pôr do sol,
.......................para o espelho,
.......................para os próprios pés,
.......................para os óculos de sol,
.................................................e suspira, e sorri.
Ama tanto que tem medo, muito medo.
Ama tanto que chora, que sofre.
Ama tanto que tudo guarda.
........................Guarda até as próprias lágrimas.
........................Coleciona vidrinhos, vidrinhos de lágrimas e diz que vai fazer uma estante com eles.
A menina é íntima do silêncio.
A menina só sabe amar sem palavras.
A menina nunca, nunca se declara.
E também por isso, o amor que a menina sempre espera nunca, nunca fica.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Sexo seguro


Use sempre camisinha.
Evite se relacionar com estranhos.
Investigue o histórico sexual de seus parceiros.
Peça periodicamente exames para a comprovação da ausência de doenças.
Use camisinha mesmo em relações estáveis.
Use camisinha mesmo durante o casamento.
Não confie em ninguém.
Antes de iniciar uma relação sexual, ferva seu parceiro durante 30 minutos, para certificar-se de que todas as bactérias estarão mortas.
Após a fervura, desinfecte cada região do seu corpo e do corpo do parceiro com álcool e água destilada.
Envolva-se em plástico filme completamente do pescoço aos pés e peça para que seu parceiro faça o mesmo.
Evite a troca de fluidos.
Evite a troca de saliva.
Evite a troca.
Prefira a masturbação ou o sexo virtual.
Reproduza-se em laboratórios especializados.
Invista em outras formas de recreação a dois.
Coma mais chocolate.
Se possível, mantenha-se casto.
Resista!
Evite, sobretudo, o sexo.
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Mandy... Isso sim é piada.
:)

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Trânsito


_ Desce todo mundo! O ônibus estragou!
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Hoje, depois de muitos dias sem andar de ônibus, e também depois de muitos dias de promessas de que diminuiria minhas saídas de carro, eis que resolvo sair de casa mais cedo e dar um voto de confiança para o transporte público. Além de ser naturalmente mais caro, usar o carro para ir todos os dias para a faculdade estava me deixando com a consciência um pouco pesada. Sabe como é: queima de combustível, liberação de gás carbônico na atmosfera, efeito estufa, derretimento das geleiras, e assim por diante. E no fim das contas, eu sei bem que essa é uma falsa necessidade.
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Pois bem... Lá fui eu feliz e contente saindo de casa meia hora antes do habitual para chegar no horário. Logo que saí de casa coloquei o mp3 para tocar aquela música de sempre, de quase todos os dias e que traduz bem essa minha mania de ouvir a mesma música até enjoar: "ouço a mesma coisa, o tempo inteiro em janeiro em dezembro, uhu". Durou pouco. Duas frases e se foi a pilha. Tudo bem, eu compraria pilhas novas assim que chegasse ao terminal.
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Quando o alimentador chega no terminal, já está lá o ligeirinho a minha espera (tudo bem, não estava só a minha espera e sairia de lá assim que eu me movesse em sua direção). E aqui, faz-se necessária uma pausa, para explicações de caráter meramente cultural:
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O transporte público em Curitiba:
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A cidade de Curitiba é conhecida em todo país pela qualidade de seu transporte público (na verdade, não é o transporte público em si que chama a atenção, mas as estações tubo que são bem bonitinhas). Tanto que, quando mudei-me para a cidade, recebi um bilhetinho de um amigo, com aquelas coisas todas de "tudo de bom pra você", "boa sorte" e entre elas, estava lá no cantinho da página um "e ande bastante de ônibus por lá que é bem legal".
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Divagações e piadinhas à parte, cada tipo de ônibus dos que circulam em Curtiba tem uma cor e um nome diferente. Os alimentadores são de cor laranja e fazem o transporte das vias locais aos terminais e os ligeirinhos, por sua vez, são prateador e param apenas em terminais e em poucas estações tubo. Têm esse nome justamente por fazerem o trajeto de forma mais rápida, o que é possível pelas paradas mais espaçadas ao longo do caminho e também pelo comportamento de seus motoristas no trânsito, que nunca param em sinais amarelos e se impõem pelo tamanho na disputa por espaço nas ruas. Li em algum lugar que esses ônibus são os maiores causadores de acidentes no trânsito na cidade (e sim, eu os detesto). Há ainda outros tipos de ônibus, mas para este texto, a explicação sobre esses dois basta.
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Voltando ao terminal:
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Realizar as duas tarefas (comprar as pilhas e pegar o ônibus) não seria possível. O momento pedia uma decisão, e rápido. Pilhas, ônibus, ônibus, pilhas. Pronto, ônibus. E lá fui eu correndo para pegar o ligeirinho. Entrei. Ônibus lotado. Olhei em volta, vi uma moça de cabelos castanhos longos, com as pontas encarocoladas e lindos olhos verdes. Pensei comigo: pelo menos, de paisagem estou bem.
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Começa o percurso e eu me sentia verdadeiramente feliz por estar ajudando o planeta. Não tinha culpa nem pelas pilhas, afinal, eu não as comprei. E tinha a intensão sincera de parar de usar pilhas descartáveis, como essas de terminal. Assim que possível, eu compraria um carregador de pilhas e começaria uma nova fase na minha vida. Até podia sentir o ar mais puro, que maravilha! O próximo passo seria o fim da vida sedentária. E depois... Meu pensamento foi interrompido por um apito agudo, chato e constante. O ônibus parou. E o barulho, idem.
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Passam poucos minutos e o motorista avisa que todos devem desembarcar e esperar o próximo ônibus.
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A Lei de Murphy:
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Sim, sempre que há alguma chance de algo dar errado, dará errado. "Chama-se murphy!"
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Pois é... Maldito Murphy!
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A Espera:
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É importante que não esqueçamos que o ônibus estava cheio e era um horário de ônibus cheios, então todos os demais também estariam igualmente cheios. Esperar o próximo ônibus significa, então, esperar os próximos ônibus, uma vez que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço (ou mais ou menos isso, não lembro mais de física).
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Entrei no terceiro ônibus. O intervalo entre um e outro é algo entre 5 e 10 minutos. Total do atraso: 30 minutos. Ou seja, tempo gasto para ir à faculdade de carro: 15-20 minutos. Tempo gasto com o transporte público: 40-45 minutos. Tempo total da viagem: mais de uma hora!
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Salvar o planeta bem que poderia ser mais fácil! Da próxima vez, eu planto uma árvore.