segunda-feira, 24 de maio de 2010

E a menina saiu para dançar...

A menina se pôs a olhar uma taça de vinho que estava sobre a mesa. A cabeça inclinada e o olhar fixo, cheio de medos e desejos. Medo porque era a primeira vez que a menina se sentia tão atraída por uma bebida da qual ela nem conhecia o gosto. E desejo sobretudo porque algo parecia lhe dizer que todo medo precisa ser enfrentado, toda dúvida deve ser vivida.

E assim, com as mãos trêmulas e os lábios frios, ela bebeu. E aproveitando que já tinha bebido, permitiu-se saborear por mais um tempo, ainda que o vinho não fosse dos melhores e que tudo indicasse que no dia seguinte ela seria acordada por uma bela dor de cabeça. E a bebida aqueceu seu corpo e lhe deu vontade de sair e viver uma vida só dela, de mais ninguém. E foi assim que pela primeira vez, a menina resolveu sair para dançar sozinha.

Em meio a uma multidão de anônimos a menina dançou até que seus pés doessem demais, até que os seus cabelos ficassem completamente molhados de suor, até que suas roupas não parecessem mais roupas de... de menina. E quando já não se via mais a menina que havia nela e que de fato era ela, a menina começou a ser atormentada por olhares penetrantes e desejosos que na verdade, não a viam. E esses olhos comeram suas vestes, seu perfume, sua timidez, sua sensatez.

Perseguida por tantos olhares tão cheios de vontades que não lhe cabiam, a menina só teve como fugir. E correndo mais do que deveria, mais do que sabia, a menina que nunca foi boa em corrida, chegou à beira de um grande lago. Como sempre fazia, encostou a pontinha do pé para ver se a água era muito fria. Do fundo do peito a menina retirou um pedacinho de papel amassado em que o menino escrevera declarações de amor à lápis e com a letra torta. Era a letra torta mais linda do mundo, pensou a menina. E era também muito triste que o menino não tenha escrito com caneta daquelas bem fortes, porque se ela não tivesse guardado tão bem as palavras dele, talvez nem conseguisse mais lê-las de tanto que o papel se amassou com o tempo. E então ela teve medo de que as palavras do menino, como ele próprio, também nunca ficassem.

E foi assim, que com os olhos cheios de lágrimas e agarrada ao que sobrou das palavras de amor daquele que sempre a viu que a menina se preparou para o mergulho. E num instante de receio, ela olhou para trás e viu rosas deixadas por ninguém sabe quem que quis com ela dançar. Morta por dentro, a menina teve pena das rosas que agora pareciam tão vivas, mas que muito frágeis, murchariam à luz do sol. Foi então que ela fechou os olhos e pulou na água gélida.

Lá no fundo do lago, onde o frio e a solidão são suficientes para que a menina não sinta quase nada é que ela quis ficar. E mesmo que ela tenha amassado e molhado todo o papelzinho com as palavras de amor, ela continua esperando que o menino encontre um jeito de ir lá resgatá-la. E enquanto ela espera, apesar de congelar por fora, mantém o coração aquecido com mais um ensaio daquelas palavras de amor de quem nunca se declara.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Dicionário: Insônia

Taquicardia; Virar-se de um lado para o outro inúmeras vezes seguidas no intervalo de dez minutos; Desacordo entre as partes do corpo que querem dormir e as que querem acordar; Livros revirados, sem que haja ânimo de iniciar a leitura; Conferir a caixa de e-mails cinquenta vezes num horário em que ninguém envia e-mails; Olhar o relógio de meia em meia hora e cada vez mais odiar não ter dormido; Repassar incansavelmente as tarefas do dia seguinte e do dia seguinte ao dia seguinte; Sentir raiva do tempo que passa ou do tempo que não passa; Sentimento de frustração por estar pela metade; Saudades de beijos no meio da noite; Ver o dia nascer e achar graça da oportunidade de noite perdida; Torcer para que fusos horários diferentes causem encontros inesperados no msn; Hiper-sensibilidade a ruídos durante o dia; Passar um dia inteiro zumbi e à noite estar cansada demais para dormir.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Sem título número qual? (ou Perrenoud pode esperar)

Quem conhece, sabe: a menina só escreve quando está em crise, ou apaixonada, ou tem um bom assunto. Quando tem assunto, poucas vezes a menina escreve em blogs. Ter assunto é algo que a torna prolixa e ninguém tem paciência de ler. Aí a menina se deprime.

Hoje é um dia que a menina separou para ler Perrenoud. Foi um sacrifício para a menina encontrá-lo em meio às estantes da biblioteca porque ela não é boa em ordem alfabética, nem em números de chamada. E depois disto: o livro. Página 27, página 28, página 32. A menina pulou a introdução. Ela sempre acha um abuso ter que ler no início aquilo que o autor escreveu só no final. Se o livro é bom, ela volta. Depois lê as orelhas, a bibliografia, as notas dos editores, a ficha catalográfica e tudo o mais onde encontra letrinhas. Se o livro é ruim, ela se sente aliviada por ter perdido o falso início.

Perrenoud é bom. Foi só o dia errado. A menina teve vontade de ler outras coisas. Coisas de pessoas conhecidas e não-francesas. Nada contra às pessoas francesas, é só porque ela não conhece ninguém que seja francês. E aí a menina abriu blogs que se fossem livros estariam empoeirados, com teias de aranhas e comidos por cupins. Malditos cupins! Comem sempre pedaços de palavras e depois já não se pode compreender se era apertar ou apartar. E nem é preciso dizer que isso muda muita coisa. Mas ela, prolixa que só, diz.

E assim, na vontade das leituras conhecidas, ela encontrou uma leitura nova. E foi melhor ainda que as leituras antigas porque significava que os amores antigos podem também serem amores novos. Não é lindo? A menina acha que é. E exatamente na semana em que a menina tinha decidido abandonar de uma vez por todas aquele amor que nunca ficava e que nasceu aqui mesmo em segredo, ela parou e sorriu.

Sorriu porque é bom lembrar. Sorriu porque dia desses ela fez um rabisco na agenda que cospia compromissos e costumava zombar dela por testemunhar os horários e prazos não cumpridos. E nesse rabisco, a menina falou que tomava café só para impressionar e parecer adulta, mas na verdade era chocolate quente que ela bebia. E então a menina sorriu porque foi ela mesma quem inventou a crise, assim como o café.

Deve ser saudade, o que sente a menina. Saudade dos dias vazios e das tardes chuvosas. Saudade dos fragmentos, dos rabiscos. Saudade daqui.

No fim das contas, a menina quer dizer que o tempo passou e ela agora sabe se declarar. E existe lá dentro, bem fundo uma vontade gigante de jogar todos os cacarecos que ela carrega na bolsa no lixo e sentar e rir da agenda. Que tipo de agenda prevê um dia para Perrenoud? A mesma que marca horários para encontros de amor, é verdade. Ainda bem que quando a menina entra em crise ou se apaixona, ela pára e escreve. Ainda bem que ela ainda se apaixona de novo, pelas pessoas antigas, assim como pelas novas. E quem sabe, num cantinho esquecido no meio das rasuras, tenha algum espaço ainda para que ela ame até Perrenaud.