domingo, 2 de março de 2008

Des-compasso


Primeira tentativa:
A menina acordou com um susto. Respiração ofegante, batimento cardíaco acelerado.
Ainda é madrugada e dormir é preciso. Respira fundo, acomoda-se na cama de barriga para cima e olha para o teto, fixamente, até não conseguir mais segurar os olhos abertos. Desperdício.
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Segunda tentativa:
A menina dormia um sono muito leve e logo acordaria. A pior coisa que alguém poderia fazer naquele momento era acordá-la porque isso a deixaria de mal-humor pelo resto da manhã, quiçá pelo resto do dia. E foi assim, nesse momento delicado que ela ouviu seu celular tocar. Fusos-horários diferentes. Desencontro.
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Terceira tentativa:
A menina acordou com o humor particularmente ácido naquela manhã. Não, o pesadelo no meio da noite não tirou o seu sono e ela até poderia dizer que dormiu bem. O que de fato lhe perturbou foi a declaração de amor ouvida logo cedo ao telefone. Descompasso.
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Quarta tentativa:
A menina acordou no lugar errado, ao lado da pessoa errada. A incoerência entre a declaração de amor recebida a presença de outrem em sua cama trouxe-lhe um sentimento intenso de solidão. Esta foi a alfinetada que recebera, fruto de suas próprias tentativas de desapego. Desacerto.
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Quinta tentativa:
A menina acordou com uma dor de cabeça aguda, a garganta seca. É incrível como o vinho se torna nocivo no dia seguinte – e ainda mais quando se dorme pouco. Levantou-se com o passo torto e sôfrego e foi direto para o banho. Ainda sentia no corpo a presença daquele outro corpo que pouco ou nada tinha a ver com o seu. Desafino.
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Desafino.
Desacerto.
Descompasso.
Desencontro.
Desperdício.
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A profunda solidão de quando não se está só.
E as perguntas de sempre, ressoando, ressoando, ressoando...
E daqui, o que vou levar?
E daqui, quem vai me levar?


(Texto baseado em rabiscos escritos em Copacabana - Bolívia, no dia 31 de janeiro de 2008).

4 comentários:

Anônimo disse...

Sinto novamente a confusão do seu e meu...suas palavras não me tocam, elas passeiam dentro de mim, como quem passeia no próprio jardim.

Cynthia Dorneles disse...

Que bom te ver em outras letras, em outro lugar, saber da sua poesia, saber de um outro rítmo, uma outra Fer
e em todas uma pessoa de coração maior que o mundo
adorei! E te linkei ao meu com muito orgulho!

Unknown disse...

Você escreve de maneira ímpar... não conhecia esse seu lado poético e determinado de ver o mundo.
Gostei muito!!!

Gavroche disse...

Isso é sem dúvida fabuloso.

Ao pé do post há uma referência a uma interferência que não sei se limita a originalidade do que escreveu.
Mas ele é sem dúvida formidável!

A dualidade ali apresentada, a situação descortinando-se como atos de uma peça teatral, revelando-se a cada "tentativa"...

Diria que mesmo culpa no que li, foi o que senti.

Excelente!
Parabéns mesmo!