A menina se pôs a olhar uma taça de vinho que estava sobre a mesa. A cabeça inclinada e o olhar fixo, cheio de medos e desejos. Medo porque era a primeira vez que a menina se sentia tão atraída por uma bebida da qual ela nem conhecia o gosto. E desejo sobretudo porque algo parecia lhe dizer que todo medo precisa ser enfrentado, toda dúvida deve ser vivida.
E assim, com as mãos trêmulas e os lábios frios, ela bebeu. E aproveitando que já tinha bebido, permitiu-se saborear por mais um tempo, ainda que o vinho não fosse dos melhores e que tudo indicasse que no dia seguinte ela seria acordada por uma bela dor de cabeça. E a bebida aqueceu seu corpo e lhe deu vontade de sair e viver uma vida só dela, de mais ninguém. E foi assim que pela primeira vez, a menina resolveu sair para dançar sozinha.
Em meio a uma multidão de anônimos a menina dançou até que seus pés doessem demais, até que os seus cabelos ficassem completamente molhados de suor, até que suas roupas não parecessem mais roupas de... de menina. E quando já não se via mais a menina que havia nela e que de fato era ela, a menina começou a ser atormentada por olhares penetrantes e desejosos que na verdade, não a viam. E esses olhos comeram suas vestes, seu perfume, sua timidez, sua sensatez.
Perseguida por tantos olhares tão cheios de vontades que não lhe cabiam, a menina só teve como fugir. E correndo mais do que deveria, mais do que sabia, a menina que nunca foi boa em corrida, chegou à beira de um grande lago. Como sempre fazia, encostou a pontinha do pé para ver se a água era muito fria. Do fundo do peito a menina retirou um pedacinho de papel amassado em que o menino escrevera declarações de amor à lápis e com a letra torta. Era a letra torta mais linda do mundo, pensou a menina. E era também muito triste que o menino não tenha escrito com caneta daquelas bem fortes, porque se ela não tivesse guardado tão bem as palavras dele, talvez nem conseguisse mais lê-las de tanto que o papel se amassou com o tempo. E então ela teve medo de que as palavras do menino, como ele próprio, também nunca ficassem.
E foi assim, que com os olhos cheios de lágrimas e agarrada ao que sobrou das palavras de amor daquele que sempre a viu que a menina se preparou para o mergulho. E num instante de receio, ela olhou para trás e viu rosas deixadas por ninguém sabe quem que quis com ela dançar. Morta por dentro, a menina teve pena das rosas que agora pareciam tão vivas, mas que muito frágeis, murchariam à luz do sol. Foi então que ela fechou os olhos e pulou na água gélida.
Lá no fundo do lago, onde o frio e a solidão são suficientes para que a menina não sinta quase nada é que ela quis ficar. E mesmo que ela tenha amassado e molhado todo o papelzinho com as palavras de amor, ela continua esperando que o menino encontre um jeito de ir lá resgatá-la. E enquanto ela espera, apesar de congelar por fora, mantém o coração aquecido com mais um ensaio daquelas palavras de amor de quem nunca se declara.
Um comentário:
O menino, sentado à beira do lago observa as pequenas manchas coloridas que pingam da canetinha que leva entre os dedos. Manchas com gosto de lagrimas que lhe teimam em cair da face e que aos seus pés movimentam se no baile das últimas marolas de um mergulho recente.
Sem perceber o menino brinca com aquela cor que se dilui na água gelada. Ele que gosta tanto daquela cor que é a preferida da menina, distrai-se e num instante sorri e diz sozinho “que menina boba!”.
E nesse momento tudo que ele quer é apenas que a embriaguez daquela menina não a tenha levado tão fundo. Fundo o suficiente para que ela não possa mais brincar com ele. Ou ainda mais fundo do que a tinta daquela canetinha possa agüentar...
Então , sem receio algum, com a canetinha colorida entre os dentes, sem considerar que possa não ter fôlego para chegar tão longe, o menino encaminha se pra dentro do lago e mergulha...
Mergulha, mas não antes de dar de ombros praquelas rosas sem perfume que jaziam sob o sol forte na beira do lago e com despeito de sua energia apaixonada, lhe diziam “ que menino bobo!”
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